Manifesto pela realidade do sexo

                                                                                                                         Jonas Lewis

    Há tempos atrás algum pedaço de perna era motivo de gozo. Catálogos rebuscados das antigas lojas de lingeries eram a diversão de adolescentes punheteiros. Hoje um rabanete no cu é a normalidade. As esporradas e a penetração de inimagináveis objetos são corriqueiros pelos vídeos que circulam na internet e nas lojas de filmes pornográficos. A mulher toma uma posição absolutamente escrava e o homem faz o que bem entende no momento mágico do ato sexual. A pornografia deturpa a realidade cruel e precisa do sexo comum. E por mais selvagem que se possa praticá-lo, ainda assim os filmes estão longe de se parecerem com a prática do mundo real. Se tentares algo parecido com sua namorada, certamente a relação durará pouco. E calma lá! Não confunda um sexo monótono e sem graça, com um sexo normal, comum, diferente sim daquele sexo circense, quase coreografado dos filmes adultos.

    Assim foi comigo no momento em que descobri o que era o boquete. Anteriormente passava-me pela cabeça que soavam trombetas e que não haviam as raspadas dentárias, tampouco aquela sensação de monotonia quando a mulher também se cansava de chupar-me como tarefa. Nos filmes era tudo tão espetacular! As mulheres deliravam com aquele momento, os homens bufavam como bois, parecendo visitar estrelas ao receberem aquelas chupadas monumentais, molhadas e lubrificadas. Tudo efeito especial! E as gozadas, então? No rosto! Ou dentro da boca, à pedidos da moça, que sedenta implorava pelo líquido prestes a ser engolido por inteiro. Balela! Bem vindos ao mundo real! Esporre na droga da camisinha, quiçá na bunda, nos peitos, mas cuidado com os cabelos da menina! Na boca nem pensar! Se contar as que deixaram, não somam um par durante toda a vida. Ingratas exceções comparadas à rotina delirante do cinema pornô.

    O cu, famoso cu! Esse sim mais apreciado por algumas mulheres, é a única salvação! O mais próximo que chegamos da cena. Tentemos então chegar aos cus! E deixo um apelo para o bem dos futuros homens. Não deixem seus filhos assistirem filmes pornográficos! Não por uma questão moral ou religiosa, mas pelo simples fato de que eles serão enganados por completo. Suas vidas sexuais serão arruinadas para sempre, e nenhuma terapia terá sucesso nessa batalha sem volta. Recortem os anúncios das Lojas Marisa, guardem os folhetos da coleção primavera verão da Renner e deixem em seus banheiros. Não à internet, não aos filmes pornográficos! Seus filhos merecem aproveitar o sexo! Seus filhos merecem conhecer o verdadeiro boquete!

Eu sangro poesias baratas

 

Giovanni Andersen Garcia

Perder-se é o ato mais “natural” de nós humanos. Conter seu fluxo é nosso maior erro. Sei que meu corpo é fluido e que escorro pela vida, ocupando frestas, erosando a terra. As dúvidas são como jarras que aprisionam nosso fluir, alteram nossas margens. São barragens no nosso destino de homem. Quero não resistir a você. Meu peito está aberto. Vem ocupar-me com tua vida! Abandono os remos e deixo que o fluxo me conduza na tormenta do amor, cambiando dia e lua, noite e sol,  namorando a chuva e desenhando em minha memória seu rosto. Fecho os olhos e você está aqui. Quando olho para o sol que surge por trás das tímidas nuvens revelo-te meu sorriso no arco-íris que coroa o encontro de dois – sol e chuva juntos a fazer vida. Que venha mais… vida que me atravessa o corpo e rasga minha alma. Eu sangro poesias baratas.

Pergunte à Cinderela

Juliana Schneider Guterres

Já dizia o poeta “é impossível ser feliz sozinho” – ao que eu sempre concordei sorrindo. Pelo menos, até agora. Quando o meu não-sozinho era passar um par de horas com o namorado do momento e voltar para o meu ambiente protegido (leia-se: a casa de mamãe. Contas pagas, roupas lavadas e guardadas no armário, geladeira cheia, banheiro limpo. A materialidade da vida cotidiana se materializava sozinha, sem que eu precisasse fazer força e, até mesmo, sem que eu me desse conta da sua existência). Sim, é impossível ser feliz sozinho quando se conta com toda a alegria e privilégio de deliberar as tarefas mais nefastas a outrem. Mas, ser feliz juntinho tendo que limpar privada e brigar para decidir quem lava a louça do jantar é uma possibilidade? Existe vida após as tão temíveis obrigações domésticas? Ou ainda, há romantismo que resista ao cotidiano que teima em invadir nossas casas? São essas as perguntas que me faço (e o cagaço que me borra!), na iminência de juntar as escovas de dentes com alguém.

Uma vez ouvi por aí que os clássicos infantis e os felizes para sempre se sustentavam porque a história que nos é contada acaba logo após o beijo. Provavelmente se entrevistássemos a Branca de Neve e a Cinderela alguns anos após o casamento a situação seria diferente. Uma princesa já meio flácida após parir um par de herdeiros com uma narina acostumada às flatulências do príncipe (aliás, aquele senhorzinho gordo e careca sentado no sofá com uma lata de cerveja na mão em nada nos lembra o gentil e amoroso príncipe das páginas anteriores do conto) esbraveja implorando complacência e compreensão do companheiro: “Não joga as tuas roupas no chão, sou eu que vou ter que juntar depois! Dá pra levantar um pouquinho e me ajudar? Olha as crianças enquanto eu esquento o jantar e passo tuas camisas.”

E o que o príncipe nos diria? Talvez que sua esposa viva com dor de cabeça e, ao invés de aconchegar-se no corpo dela, ele procura alívio no banheiro com uma revista de desconhecidas mulheres nas mãos. Que ela olha mais para os filhos do que para ele. Que ela pede ajuda, mas que quando ele a auxilia ela reclama que está tudo errado e diz que sozinha faria melhor. Que o churrasquinho em família dos domingos vira o encontro semanal das mulheres queixosas – cunhadas, primas, sogras e sobrinhas desfiam o rosário de reclamações dos seus tão inúteis maridos. É, elas insistem em apontar suas falhas, mas esquecem-se de elogiar suas qualidades.

Ando pensando que o verdadeiro conto de fadas se faz entre nós, reles mortais. Naquele dia em que ele, sabendo que ela chega do trabalho cansada, se adianta ao preparar o jantar e espera ela na porta sorrindo com uma música suave tocando ao fundo. Ou quando ela, sabendo que é dia de jogo do time dele, resolve não incomodar-se em não ver a novela. Também quando os dois se beijam felizes pela manhã – esquecendo-se de que ela passou a noite puxando as cobertas para cima de si enquanto ele orquestrava uma sinfonia de roncos do seu lado. Ou ainda quando os dois decidem tirar um final de semana a dois e negociam o pouso das crianças nos lares alheios.

Os príncipes e princesas funcionam muito bem para, na infância, nos introduzir no tão necessário mundo do romance, mas aposto que eles não saberiam lidar com o caos pragmático do cotidiano. É preciso ser muito humano para escrever sua própria fábula de felizes para sempre.

O filósofo é um tampinha

Jonas Lewis

 O que é nobre de ser questionado tem sido motivo recorrente nas academias de filosofia. Séculos de existência e o estudo do conhecimento evolui como o homem. Visto que dele provém, não me espanta que sua linha evolutiva não ultrapasse os limites humanos e nada se diferencie de nossa capacidade. Porém tratando-a de maneira justa, como sim deveria ser tratada a verdadeira filosofia, posso ao menos presumir que ela, estende-se ao horizonte, flexiona-se junto aos verbos e marcha em consonância às rodas automotivas. Aonde quero chegar é na triste posição dos filósofos. Habitantes monótonos do cárcere intelectual, perseguidores cruéis de uma forma desconhecida de pensar o que se deve pensar, por existir, instantâneo, como lógica e charada. Não têm buscado os homens da Filosofia, o descortinar vibratório do universo, o desvendar ingênuo do habitar poético. Pois quero ainda chegar ao ponto mais específico: a linguagem.

Habitamos a linguagem, somos linguagem a cada agitar dos olhos. Antes disso, somos linguagem a cada tentativa de tentar. Essa prisão a que somos acometidos, faz-nos seres. E somos seres porque habitamos a linguagem. Existimos na e para a linguagem, e não o inverso como ferramenta. Ela não nos fornece, não nos ajuda. Disse Heidegger, em um de seus ensaios no A Caminho da Linguagem: “Não é necessário um caminho para a linguagem, e isso seria até impossível, uma vez que já estamos no lugar para o qual o caminho deveria nos conduzir.” Simplesmente não podemos ser se ela não é. No entanto, a fenomenologia do corpo tenta empurrar-nos algo a que os filósofos se dedicaram por todos esses séculos. A definição do que pode comunicar-se e do que é deficiente em comunicar-se. Aí entra a injustiça com a Filosofia, cometida por eles mesmos, os filósofos. Esses homens insossos, inexistentes, por tantas vezes assexuados, que negam o instinto como instinto, que desdenham do sexo em seus sérios tratados, que não aceitam nada afora o palavreado pomposo ou o estudo analítico em suas pífias academias.

Puseram-me à frente, dentre tantas outras insanidades, o senso-comum exacerbado de que podiam sim as mãos comunicarem-se. Que os dedos diziam muito e que os olhos também eram excelentes instrumentos de linguagem. Instrumentos de Linguagem? Logo depois, o pior. Que as nádegas de uma mulher desnuda, preste atenção, as nádegas de uma sem as vestes nada tinham a dizer, teorizavam os pensadores. Assim não entendiam como aquilo causava reações ao homem que as fitava. Não entendiam? Pois eu entendia! Porque aquelas nádegas esbanjavam linguagem! Aquela linguagem esbanjava-se abaixo das costas e as coxas suportavam comunicações exacerbadas. Era uma linguagem que, por vezes, atingia o homem como espada, atravessando-o pelos pulmões. Mãos? Que tipo de idiota contestaria que as mãos se comunicam? É claro! Os dedos também, que o digam os surdos! Mas é típico dos filósofos fazer pouco caso das bundas, não falar dos seios e ignorar bocetas! Por isso a Filosofia anda desgastada, enfadonha, travada em séculos de releituras e carente de devaneios, mendigando coragem e desafio. Culpa de homens e mulheres vazios de criação, cientistas, estrábicos leitores que ocupam-se com os mitos gregos, discussões solenes, teorias com faustosas intenções, lotadas de demonstrações de cultura e estudo profundo de uma disciplina inexistente chamada pensamento.

Metade

 

Jonas Lewis

 

Tinha sono e não pude dormir.
A luta imensa de fechar os olhos e saber-me só.
Faltava a fatia da cama… um naco da vida.
Sobrava o sono restante… em migalhas.
Desequilibrado, faltando o vai e vem do teu peito a respirar,
E o sopro silencioso de nossos ventos fazendo a cantiga do sono.

Não pude dormir.
Faltava-me o deitar dos teus braços, a confusão macia dos teus cabelos.
Tinha sono e não pude dormir.
Lutei com metade de mim, metade da cama, metade da alma.
Não se dorme bem só com a metade.

No buraco da fechadura (pra Juliana)

Jonas Lewis

E quando somente são as buzinas? Quando são árduos os dias e as noites nem tem colorido? Deixa na alma o mundo uma espécie de sonho impensado, que ao berro do primeiro berro não almejamos conhecer. Somos cobertores quentes desabrochando devagar à imensidão iluminada, carentes e incapacitados de conhecimento. Podemos inundar a alma num choro instintivo, transbordando em verdade ilógica, pedindo o seio. E é o que resta. É o que vale. Não cabe-nos julgar o que virá o que deveras merecíamos.

Mas o dia apresenta-nos arpões, farpas hipócritas chamadas automóveis. A noite escorre suores indecentes por nossas coxas insaciáveis e somos pássaros de espécie desconhecida, caramujos com insônia que vagam pelas capitais e trabalham no campo. Desconhecemos gente, conhecemos chaves, fechaduras e senhas. Abrimos o peito aos cremes doloridos da saudade e mesmo assim não buscamos curá-la, feri-la com nossas unhas insossas de leão sem raça.

Alguém um dia bate em nossa janela, silencia as buzinas que atordoam o sono. Com algum pincel que traz escondido, esbarra cores aleatórias em nossas noites escuras. Berra conosco num falsete tão belo que faz acorde, e fechamos os olhos num beijo que desabrocha devagar. Inundamos a boca, e os lábios, aí sim, dessa vez fogem à lógica, numa infinitude longínqua chamada dança. São passos que descontrolam o tempo e é o que resta. É tudo que vale, outra vez, como crianças.

De novo a noite, mas o suor agora é suco de nossa alma. Reconhecemos a espécie e vagamos querendo ciência, reconhecendo gente, escancarando o peito e matando a saudade um do outro. Cravamos as unhas e entregamos nossas chaves, perdemos nossos bens e mostramos o mau que ainda nos resta. As cores aleatórias do quadro da noite tomam rosto de pintura. Arte ou não, exposta ou não, é nossa casinha com nossa árvore e nossa nuvem de algodão.

Lá fora ficam os carros, as casas frias de cimento e vigas, as nuvens de verdade, os caramujos, as coxas e as noites sem quadro, inóspitas suando frio. No buraco da fechadura, sobra o que deveria ter sobrado sempre: o amor.

Letra e corpo

Juliana Schneider Guterres

“Um boneco!” – grita ele enquanto eu, pacientemente, escolhia uma cor de folha para desenhar também. Olho para ele, ele me olha sorrindo, mostrando-me com os olhos o desenho que acabara de fazer. Sim, um boneco – que sorri simpático e solitário no fundo verde do papel.

Desisto do meu desenho. Preciso de letra. Escrever diminui a angústia da não palavra. O não dito que se faz presença quase palpável.  Sorvo do verbo solto à procura de um sujeito.

Deixo passar. Passo a deixar. Me deixo. Passada. Passagem.

Faço-me letra enquanto ele está puro corpo.

*Escrito minutos atrás durante um atendimento. Parceria terapeuta-paciente. Angústia-passagem.

Foda-se o seu modelito musical

Jonas Lewis

Jazz, Rock’n Roll, Blues, Techno, House, Electro, suas bifurcações e subdivisões, o tão chamado Samba de Raiz, a música erudita, tudo encaixa-se perfeitamente no chamado bom gosto musical da classe média branca e ascendente. O brasileiro escuta de tudo o que o exterior põe em suas mesas, em suas caixas de som, e o pior, em seus I-Pods. Invenções repetitivas vindas da Suécia, modernismos antigos do velho Reino Unido, rocks americanos monótonos, estourando a tolerância ao 4X4 duro. Vindo da juventude, não me espanta que não conheçam nem os clichês da Tropicália, ou as velhas baladas de boteco do Djavan. Caetano Veloso, Chico Buarque, para não aprofundar-se na possibilidade brasileira de fazer música, são como coadjuvantes de dois ouvidos contaminados pela língua inglesa, pela vã poesia e pelos significados vazios. Ainda conhecem os gigantes. Ufa! Led, Doors e Stones. Pink Floyd continua eterno, mas incompreendido, visto que sua audição dá-se através de certa obrigação frente às necessidades sociais. E aí que me refiro. Obrigações fazem opiniões, e opiniões tomam o lugar da verdade.
O único espelho verdadeiro que a humanidade possui é sua música. Não há povo que não tenha seus batuques, suas melodias e sua sonoridade. Isso é importante de se compreender. A música é o reflexo de um povo, e melhor, é o âmago de um povo. Sua essência na forma mais pura, posta em acordes, palavras, ritmos, timbres e intensidades. Na música não há o feio. Há sim a falta de trabalho, o esquecimento de que fazer música é filosofar sem saber que se está filosofando. Existe sim a falta de inventividade, criatividade e inspiração. Há também a busca pela grana, é claro. Mas isso é outra história.
Confunde-se muito a estética de um povo, seus rituais e sua linguagem, com uma espécie de necessidade social de diferenciar-se daquilo, negando sua qualidade. Tente defender o Funk Carioca frente a um grupo de pessoas numa escola particular. Os argumentos serão cuspe na fogueira, frente a incapacidade de compreender sua estética, sua verdadeira essência. Falta aos críticos de plantão a capacidade de fazer certas análises, como:

– De onde vem essa música?
– Como é esse lugar?
– Quando foi pensada?
– Por quem foi pensada?
– Existe TRABALHO aí? Existe ARRANJO, COMPOSIÇÃO, PENSAMENTO, BUSCA, SONORIDADE, CARA?

Essas são as 5 perguntas principais que se deve fazer ao deparar-se com um trabalho musical. Quem dera as fizesse quem rechaça movimentos musicais como o Funk Carioca e o Calypso. Pobres ouvintes de repetições, viciados num mundo onde a própria inovação é limitada. Escutam mastigações musicais de movimentos antigos e fazem pouco caso de novidades interessantes e grandiosas. Usam música como roupas, baseados em classes sociais e aceitações dentro do grupo. Como escutarei Pagode se meus amigos odeiam com todas forças? Como direi que aquela batida do Funk me encanta? Como assumirei que a putaria nas letras me é agradável? Nem isso podem entender os críticos! O que esperam da música que cresceu junto do crime, da diversão sexual e da marginalidade? Ela precisa ter essa CARA! Essa é a VERDADE de uma música. Não são poemas parnasianos e versos pomposos. É poesia do povo, da juventude marginalizada que precisa chocar o asfalto.
O que esperam do Calypso de Belém do Pará? Querem a melancolia islandesa, ou o bucolismo neozelandês? Não será assim. A Joelma, vocalista do grupo, representa as mulheres de Belém do Pará com perfeição. As letras falando de casos de amor, a breguiçe espontânea, essa é a VERDADE nua e crua de um povo que faz uma música lotada de personalidade, qualidade e inventividade. Além de revelar um grande poder de arranjos e músicos fenomenais no palco.
Portanto, foda-se sua bandinha de rock! Foda-se seu cover dos Beatles, suas composições que parecem já ter sido feitas dez milhões de vezes por outras pessoas. Foda-se sua inverdade musical, sua necessidade existencial de permanecer intacto num grupo de pessoas proibidas de apreciarem movimentos artísticos. Vocês são a vergonha da arte. Vocês são o atraso da apreciação musical. Vocês envergonham a classe dos músicos e da platéia, que deveria estar insaciável, doida por novas possibilidades, novas sonoridades. Foda-se sua mistura de bossa-nova com drum’n bass, foda-se seu tango eletrônico, foda-se também seu electrozinho cantado por uma mulher de voz fina. Foda-se seu funkinho romance de boteco, seus arranjos “pizza congelada”. Comecem a prestar atenção no gueto. É de lá que vem o futuro. A inovação vem de baixo. Há muito tempo a classe média deita-se em todos sentidos numa nuvem imunda chamada comodidade, e os ricos assumem seu papel de teto. Não se esqueçam do Brasil! Não se esqueçam que música não é bolsa nem camisa. E como disse Jorge Ben: “O belo pode ser simples e o simples pode ser belo”.

Jogo da Vida ou Seu bode comeu orquídeas premiadas. Pague $ 3.000

Já que o tempo é de se reler, publico de novo este texto – de tanto que gosto. Não me canso de ler. Espero que vocês apreciem (sem moderação!) tanto quanto eu!

Juliana Schneider Guterres

DENTRO SEM FORA

A vida está

dentro da vida

em si mesma circunscrita

sem saída.

Nenhum riso

nem soluço

rompe

a barreira de barulhos.

A vazão

é para o nada.

Por conseguinte

não vaza[1]

Quarta-feira. Nossa sessão começa sempre por volta das três da tarde. Sol. Chuva. Tem dias que faz frio, noutros o calor é escaldante. Passam-se dias, semanas, meses, mas o jogo é sempre o mesmo. O Jogo da Vida. O ritual tampouco muda. Ele entra na sala, senta-se calado. Pergunto como ele está. Silêncio. Como foi a semana. Silêncio. (Às vezes tenho vontade de parar de perguntar.) Passam-se alguns minutos, ele me olha e diz “vamos jogar. O jogo, aquele”. Vai até o armário, pega a caixa. Sentamos no chão. Abrimos a caixa, montamos o tabuleiro, distribuímos as notas coloridas de dinheiro, escolhemos a cor dos nossos carros e aconchegamos neles nossos eus-bonecos – segundo as instruções do jogo, bonecos rosa são para meninas, azuis para meninos. Quem tira o número mais alto na roleta, começa o jogo e parte para gerir sua vida, agora estampada (e capturada) naquele tabuleiro.

De início só se abrem duas possibilidades: fazer faculdade ou não fazer. Se fizer, a sorte vai dizer se você será médico, advogado, engenheiro, artista, professor ou terá somente um diploma universitário. O salário varia de acordo com a profissão. Se não fizer, não fez. O caminho é mais curto, assim como o salário. Daí em diante, todas as vezes em que passar pela casa “Dia do pagamento” você receberá seu salário. Mas muita atenção! Você perderá o salário se esquecer de recebê-lo antes que o próximo jogador gire a roleta.

Nas rodadas seguintes, o dia do casamento (receba os presentes!). Parada obrigatória. Todo mundo é obrigado a casar? No jogo da vida, sim. E até que a morte ou o fim do jogo os separe, porque, mesmo que procure em todo o tabuleiro, você nunca encontrará a casa “Divórcio. Pague $ 30.000”. Assim, o mesmo cônjuge-boneco e um punhado de filhos-bonecos (receba os presentes!) – que, fatalmente, você terá – te acompanharão até as últimas casas. (Lembrando, papai-boneco e mamãe-boneco sentados na frente do carro, azul e rosa, respectivamente, sem possibilidade de alteração. Filhos-bonecos no banco de trás. Bicolores, azul para meninos, rosa para meninas, mais uma vez, nenhuma possibilidade de alteração – nem da cor, nem da estrutura familiar.) No final do jogo, cada filho-criança-boneco será trocado por $ 48.000. E o cônjuge-boneco? Este não lhe serve mais pra nada. Talvez vocês possam se encontrar em uma próxima partida.

Segue o jogo. “Você precisa de dentadura. Pague $ 2.000”. “Herança. Receba $ 30.000”. Quem morreu? O jogo não menciona, mas há se ser parente próximo. Aceite, assim você poderá pagar ao dentista pela dentadura. “Seu iate bateu em um icebergue. Venda cubos de gelo e receba $ 10.000”. “Seu bode comeu orquídeas premiadas. Pague $ 3.000”. Bode?! “Ganhou Prêmio Nobel. Receba $ 120.000”. “Ganhou reality show! Receba $ 200.000”. Quanta versatilidade!

Mais rodadas. “Titia deixou 50 gatos. Pague $ 20.000 para os cuidados”. “Ajude a Arara Azul a não entrar em extinção. Pague $ 220.000”. “Comprou 2 cavalos. Pague $ 60.000”. A bicharada levou todo nosso dinheiro.

E a roleta segue girando, trazendo nossa recuperação. “Achou tesouro antigo no quintal. Receba $ 24.000”. “Descobriu Atlântida enquanto fazia pesca submarina. Receba $ 12.000”. “Achou obra de arte! Receba R$ 120.000”.

Quem ganha o jogo da vida? Segundo o manual de instruções, se ninguém se tornar magnata, o jogo termina quando o último jogador for à falência ou se tornar um milionário. Todos os jogadores, então, contam seu dinheiro, quem tiver mais, vence. Simples assim.

Ou não.

E se você não fosse milionário? E se tampouco fosse à falência? E se você não quisesse balizar sua vida pelo saldo da sua conta bancária? E se as meninas passassem a usar azul, resolvessem não se casar? E se os meninos quisessem namorar outros meninos? E se passássemos a andar a pé? E se algumas crianças não tivessem família? E se algumas famílias não tivessem criança? E se não existissem famílias? E se existisse vida para além do tabuleiro?

Sigo sem entender o bode. Assim como a vida capturada em um tabuleiro.

Jogo da vida, vidas em jogo. A vida, no jogo, não vaza.


[1] GULLAR, Ferreira. Toda poesia Toda poesia (1950-1999). 18ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009. p. 393.

Abrindo as gavetas, desencavando antigos escritos

Criar

Dizer o não dito

Brincar

Lançando rimas no infinito. 


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Narciso

Ah, como te amei!

Tanto que não notei

De frente para mim

Não era eu que você enxergava

Meus olhos, só espelho

Onde você se contemplava.

Juliana Schneider Guterres


Metafísica

É tanta metafísica e há tanta metafísica,
Que nem mais a antiga firmeza das pernas carrego.
Pesa-me alguma racionalidade aos pés,
E assola-me algum instinto no peito.
A metafísica faz-se reles, como sermão duradouro, monotonia.
És a verdade e a finalidade infinda, como o vento.
Que cessa por perto e vai agir noutro veraneio.
És o beijo que não há em nenhuma metafísica.
A lógica que não haverá num cálculo,
E o sopro de arrepio que não faz-se presente em nenhum vento.
És meu presente. A subjetividade lógica do amor.
És saudade. E a saudade é a única metafísica.
Tocante na alma, cavando nos arredores da certeza…
Uma doce armadilha chamada paixão.

 

 

Jonas Lewis

Alice que mora em mim

Chamei Alice para contar o que estava na dobra da folha amarelada pelo tempo. O tempo esmaeceu. Estava cansado de ser ignorado. Alice ficou surpresa ao ver o tempo tão cabisbaixo. Sentiu-se tocada pela tristeza que emanava dele por aquela voz amarela que vinha da folha. Chamei e nem disse quem era, mas ela veio mesmo assim. Ela sempre vem. Daquele encontro de Alice com o tempo brotou cansaço, Alice esmaeceu ao lado do tempo e os dois ficaram amarelados como a folha. Amarelo queimado, envelhecido, esquecido.

Eu queria esquecer. Alice queria surpresa. Ela era a menina que morava em mim nas noites vagas das portas abertas. Era quem me entregava o fio para que eu não me perdesse. Ela vagava despreocupada pelos meus labirintos escuros enquanto eu temia. Era ela quem me acendia a luz e tirava o Minotauro do caminho conversando com ele. Era quem me fazia rir. Era também no colo dela que eu deitava quando tinha medo.

Geralmente trazia seu sorriso no rosto e só às vezes ficava triste. Quando ficava triste ela buscava outros colos nos quais podia deitar.

 

O que será da Rua de Mão Única?

Está na natureza
Será, que será?
O que não tem certeza nem nunca terá
O que não tem conserto nem nunca terá
O que não tem tamanho…

O que não tem governo nem nunca terá
O que não tem vergonha nem nunca terá
O que não tem juízo…

Sentou-se na cama com o corpo ainda dolorido e olhou a janela. Borboleta pousada no parapeito aguardava a abertura dela para olhar. Lá dentro alegria era pluma pairada sobre o ombro dele. O salto, o sapato, uma noite. Bebida. Encontro. Tudo ressoava na tontura do corpo. Alegria era o vento que levantara a blusa dela ao dançar.

Acordaram acompanhados um do outro na sala que não era deles. Cada um seu corpo, cada corpo seu lado. “Quem diria…” pensaram. Mas alegria era o sorriso de pluma no canto do lábio e letra da música dita ao pé do ouvido.

O abraço calava as palavras da manhã fria e atenuava a estranheza de tão boa sensação: estar junto. Alegrias eram plumas colhidas no instante. Beijo ainda era doce de manhã.

A rua era de mão única, mas, tudo bem, naquela manhã queriam ir para o mesmo lado.

*Texto baseado em fragmentos do livro: Rua de Mão Única de Walter Benjamin.

**Originalmente publicado aqui: http://mariliasilveira.blogspot.com/

Amar, sim, é a criação

Por Jonas Lewis

É um amor pobre aquele que se pode medir. Há gente que ainda não sabe escutar o silêncio. Não pode compreender as incompreensões do coração. Falta-lhes não sei o que. Sobra-lhes realidade, ruídos e imagens. Pobres guardadores de felicidade. Plenos e risonhos, fartos e destinados, enxergam o pensamento como qualidade, meta e necessidade. Não descobrem em seus próprios compartimentos do desespero, gavetas da angústia, que o pensamento é o coração em ação. Pode o homem encontrar a alma no choro de outro homem, no riso de outra alma e no silêncio de algo. Hei de enxergar velharias em minhas gavetas, agarrá-las e multiplicá-las em sofrimento incurável, lágrima indispensável e felicidade expandida por entre monstros chamados momentos.

Moças e poesia, incerteza e capacidade de saber o que é belo. Amar as árvores de Petrópolis, e enganá-las fingindo plenitude. Sorrir aos sorrisos e aos choros, tratá-los como trato um cão. Assim tenho procurado em minhas reservas um pouco do meu coração. Mentindo fatos desinteressantes e pequenos chega-se à opiniões humanas, que beiram a insanidade insalubre. Ditos esperados e frases que são lixo ao pensamento. Afinal, quem avalia tudo é o coração, disfarçado de alma, cérebro e conhecimento. Ora, o conhecimento, empregado da paixão, substituto da verdade dolorida à alma humana. Teoria e estratagema, modos e normas, fugitivos da capacidade poética, da graça feminina e da incessante busca à própria alma. Corremos então ao velho abismo do nada, ao silêncio da vacuidade, à falta de ruídos doentia, ao marasmo da eterna angústia e às linhas em branco frente à maquina posta.

Doentes do coração são os que não acreditam que há música nas folhas secas do caminho. O ruído da sombra, da possibilidade infinita de ser folha e de estar no caminho. A melodia dos contratempos que o vento é pai, os falsos pulos e a queda silenciosa. Despedaço-me na tentativa de uma criação ao saber que nada criarei. Que amar, sim, é a criação intensa e pura. Quando se recebe de regalo as obras do acaso, entende-se que é pobre a máquina humana. Comprova-se que a razão é o vento, o conhecimento não passa de sombra e as intenções são como a tempestade repentina no mar. E só.

Corte

Te encontrei finalmente, depois de tanto tempo. Sabia que estaria diferente. Digo, de cabelo cortado, vestindo novas idéias, escondido atrás de camisetas mais limpas. Ensaiei mil vezes te ver com a nova namorada. Eu sorriria amarelo-vômito e evitaria as ruas cujos muros contavam nossa história. Mas há tempos não compartilhávamos rotas. E teu único relacionamento sério era com a própria desgraça.

Tuas costelas desafiavam os limites da pele, tuas olheiras eram fundas, teu odor e teu tom denunciavam teu fim. E teus olhos, vazios (Ah! Te arranquem as bolas mas não aquele brilho nos olhos!). Que não comia há uma semana, tu me confessou. Eu, sendo eu e nunca tu, ri nervosa e brinquei “o que gasta na pedra economiza na comida! Há!”. Tu, sendo uma casca vazia e também não tu, – não o tu quente, não o tu especial – me encarou sem reação. “É a nóia”.

Sorri e me virei para ir embora. Quem diria que até eu cansaria de aceitar só teus restos. Teus pulmões terminais roubavam todo o oxigênio do elevador. Entenda, eu tinha que partir. Por nós, pela lembrança. Tu me puxou pelo braço com força, quase me machucou. Tu ainda tinha emoções, expressões, reações! Ah, reações, químicas, biológicas, imediatas! Te olhei nos globos oculares, pronta para a resposta de final de novela das 8. Mas tua confissão de amor não veio. Veio o medo. E logo depois veio a faca. Mas o que me cortou foi a pergunta. “Não tem grana aí pra me ajudá?”

Texto de Janaína Bordignon, inspirado na vida de tanta gente que ela conhece.

Solidão

Uma tempestade

Ou apenas uma chuva torrencial

Não me importa

Fico na janela

Imaginando

Aguardando…

Para que quando chegues

Seja minha a mão que abrirá a porta

Sejam meus os braços que o confortarão

Seja minha a boca que o beijará (…)

Mas enquanto isso não acontece

Continuo aqui sentado, imaginando…

Observando a rua

Banhada em minhas lágrimas.

Poema de Jader Girotto, inspirado em Giovanni Andersen Garcia

Acabo de me suicidar para uma nova vida

Texto de Giovanni Andersen a um amigo que andava desistindo da vida

Não creio ser a pessoa mais indicada a te ajudar ou mesmo aconselhar, mas muito me preocupa te ver assim tão melancólico. Não serei aqui um otimista-moralista-hipócrita, te dizendo que a vida é linda, bela e florida, pontuada por dias azuis e noites mornas de luar. Sabemos que há dias de muita chuva e trovoada. Também não sou o tipo de cara que acha que a vida vale a pena a qualquer preço ou custo. Sou franco em dizer. Penso que as pessoas têm sim o direito de escolher se querem seguir vivendo uma vida que lhes é satisfatória ou não e isso implica também em decidir por ceifar ou não a própria vida. O que eu posso te dizer, amigo, é o que o Giovanni faz. E eu não acredito na morte. Assim só me resta a vida, e eu quero vivê-la da forma que for – com risos e lágrimas, com amores e rancores, mesmo que tenha a carne e a alma rasgada, que a dor venha em busca de aconchego. Eu não tenho outra escolha a não ser buscar uma vida mais satisfatória. E eu o faço constantemente, amigo. Nesse exato momento, estou matando um eu, uma vida que não me servia – acabo de me suicidar para uma nova vida. Uma nova vida que também vai me maltratar, mas é assim, nada é constante, nada é eterno, tudo é o mesmo e o contrario. A pergunta então é o que você esta querendo ver. Que vida você quer ter? Mude o que não esta bom. Mate essa vida que te traz lágrimas, angústia e melancolia e saia em busca de outras formas de viver! Não se deixe ser vítima em uma história que você tem o poder de escrever e reescrever. Abandone o desejo pela morte e conforme-se de que só temos a vida mesmo. Assim sendo, aproveite o período que é a vida. Viva a consciência de estar vivo, vivendo cotidianamente. Respire e sinta que seu corpo é uma vida, e que vive na sua consciência. A morte é só a inconsciência e nada mais. É isso o que penso, é dessa forma que Giovanni encara a vida!

Ciranda

Por Giovanni Andersen Garcia

Um corpo que gira e roda sem parar. Roda, redemoinho, roda a pensar. Um corpo que gira, pula, dança, roda e roda pelo ar. Um corpo que cai, um corpo a sangrar. Um corpo que parte para buscar-se. Corpo gira, corpo grita, corpo canta, corpo dança, corpo sangra, corpo corpo.

Um corpo que chora o que se vai. Um corpo que não vê o que se tem. Um corpo que ri aflito para o que não vem. Corpo, um corpo.

Um corpo só, só um corpo só. Um corpo que não mais. Um corpo que resiste ao aqui jaz. Um corpo – um grito. Um corpo – um riso. Um corpo – um suicídio. Um corpo arrependido. Um corpo violência da carne, violência da alma. Um corpo de risos químicos. Um corpo de lágrimas químicas. Um corpo de desejo químico. Um corpo químico, vida química, morte química.

Um corpo que gira e roda sem parar. Roda e gira a gritar.

Um corpo que gira e roda sem parar. Roda e gira a pensar.

Um corpo que gira e roda sem parar. Roda e gira a amar e gozar.

Um corpo que gira e roda sem parar. Roda e gira a sofrer sem lamentar.

Um corpo que gira e roda sem parar. Roda e gira a esperar que a vida o venha buscar.

Um corpo que já não mais pode ser, a não ser o Ser que só pode se pensar ser. Um corpo que o corpo já não mais pode ser, a não ser o corpo que pensa ser. Um corpo que já não mais tem alma, a não ser a alma que pensa ter. Um corpo que já não mais tem vida a não ser a vida que pensa ter.

Um corpo que insiste, persiste, resiste ao que pode vir a ser.

Um corpo que gira e roda a roda da vida na busca da morte.

Um corpo que gira e roda na dança da morte. Um corpo que gira e roda – é verbo no poema da morte. Um corpo que gira e roda no beijo vivo com a vida morta.

Um corpo que gira e roda, escapando do tempo, escorrendo na vida, mergulhando na morte.

Seu corpo que gira e roda em torno da vida, que gira e roda no entorno do meu corpo, que gira e roda em torno da vida, que gira e roda no entorno do seu corpo.

Um corpo que gira e roda vivo. Nossos corpos que giram e rodam juntos vivos.

É assim que sei ser vivo – em e com corpos que giram juntos.

O retorno de Saturno

Por Giovanni Andersen Garcia

Sobre meu teto astral pesa a sombra do retorno de Saturno. E assim é como reza a lenda astrológica – minha vida não mais é o que era, estou de ponta cabeça. Tudo esta desordenado, tudo é caos, meu corpo rebela-se contra a minha lógica e razão. Vivo uma rebelião interna. Fujo de mim como que se pudesse esconder-me  de minha consciência, mas encontro-me, castigo-me, aplico-me penas, atiro-me ao cárcere, vivo a tão narrada bipolaridade. Grito: QUEM ÉS TU? Mas o que tenho é apenas um reflexo que me devolve a pergunta no ato: quem és tu?

Rasgam-me corpo, mente, vida. Deixa-me exposto, obriga-me. Diz quem eu sou, narra quem eu foi, ridiculariza-me, humilha-me, leva-me ao choro, exige auto-piedade.

Corpo exposto, vida exposta. REVOLTA! Declaro guerra, travo as batalhas! Um Quixote que é seu próprio moinho de vento, cavaleiro errante. Por onde andará minha Dulcineia? Onde eu estou? Perdido dentro de mim mesmo, corpo e mente disputando por autonomia. DILACERAÇÃO. ESQUIZOFRENIA.

Para onde vou? Se há uma resposta, esta guardada pelos astros – e a mim não interessa saber. O que quero é o que tenho: inconstância.

Meu corpo é um astro que busca orbitas errantes a fim de entrar em rota de colisão. Colidindo corpos, encontrando astros. VIVER VIVO! A fusão transcendental – corpo, mente, sexo, gozo.

Se antes tinha medo de saturno pairando em meu mapa astral, agora o saúdo! Saúdo a liberdade, o sol, que podem entrar em minha carne depois que saturno destruiu tudo.

Tenho agora um CORPO LIVRE!

Accademia della Follia em Porto Alegre

Pensei na Reforma Psiquiátrica, no estar com o grupo de teatro de Trieste: Accademia della Follia. Filhos da Lei 180 na Itália.

"Nós não fazemos teatroterapia, nós fazemos teatro", "Eu sou louco, não doente" dizia o diretor Claudio Misculin, ali não era um debate sobre Reforma era um efeito de Reforma em ato, era um efeito de vida da Reforma. Encontrei-me com aquelas pessoas na universidade, no dia seguinte dentro do manicômio (Hospital Psiquiátrico São Pedro) e no seguinte ainda, no teatro. 

As capturas dos discursos foram completamente diferentes em cada um dos ambientes, claro! Na universidade Claudio nos falou sobre seu método de fazer teatro, da memória que fica no corpo e por isso fazem os exercício de cena correndo, fazendo flexões...falou nos três pontos de onde saem a voz no corpo (peito, garganta e testa). Deitou-se no chão, fez flexões engolindo ar, e na sequência levantou-se sendo Creonte tirando a fala de uma voz gutural até um falsete, na mesma cena. Falou com uma sensibilidade indescritível de cada um dos atores, do que cada um tinha de potência e de como ele precisava trabalhar cada elemento com cada um. Seu teatro, ele disse ainda, é feito de RISCO e de EXCESSO. 

No manicômio fomos capturados pelos instituídos, falaram de seus diagnósticos (ainda que afirmassem que não estaríamos, de fato, interessados nisso), dos remédios que tomam... ali o contraste entre os atores e os usuários dos residenciais terapêuticos era triste. E ainda se viam pessoas de jaleco branco circulando e um funcionário arrastando um usuário à força para... não sabemos onde.... Camisa de força humana, prisão. É possível desinstitucionalizar um manicômio? A vida pode morar no manicômio? Num banheiro cujas portas não fecham, não tem papel e as privadas não tem tampas, onde não tem água, é possível? Entre janelas de vidros quebrados, frio, chuva e gente com fome o que é possível? 

Os atores então decidem nos mostrar algumas cenas, especialmente uma que causa grande espanto. Um ator grande e com voz grave saiu do hospício e voltou para casa, sua mulher, Marina, faz a comida. Ele arregala os olhos e chega por traz dela, agarrando seus seios, a mulher paraliza mostrando o incômodo de estar com seu louco de volta em casa. A platéia paraliza, um suspiro! Risos incontidos. 

Vale ressaltar que a moça em cena é a única "normalóide" (como a nomeia o diretor) do grupo.

Na sequência vamos ao teatro e a cena que nos faz perder o fôlego é a de Claudio costurando (de verdade!) sua barriga. 

Loucura? 

Corpo sem órgãos? 

Teatro! 

Risco e excesso, Extravagância – o nome da peça!

Vida! - Eu diria.

Deixo-os então com os próprios atores, em cena! E se tiverem a oportunidade de assistir, não percam! Eles estão em turnê por várias capitais do Brasil, ainda que a mídia não divulgue...

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